Meia dúzia de graus - director's cut

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Observações: esse post é baseado em um contexto literário com a visão do autor. É possível acessar o mesmo conteúdo em um texto editado e mais conciso clicando aqui.


Era o toque do celular. Um emaranhado de coisas passou por sua cabeça, até que conseguiu perceber a situação com mais clareza: acabara de acordar. Mal começou o dia e já tinha uma chamada – não identificada – perdida. Mas como já estava quase na hora de o despertador cumprir sua função, antecipou-se e desligou-o. Ainda com o relativo breu, beijou burocraticamente sua mulher e levantou-se.

Pela claridade no banheiro, constatou que o dia seria de sol, muito sol. Foi preparar o café, mas a diarista já havia assumido a função. Enquanto esperava, acordou suas duas filhas e leu as principais notícias do jornal. Alimentado, com banho tomado e vestido, chamou a mais filha mais nova e o elevador. Pegou uma blusa e foi aguardar. Ao abrir a porta deu de cara com seu vizinho, que estava acompanhado por um gringo que era sueco e estava a passeio no Brasil.

Ao dar a partida, apreciou o ronco do motor... Era como se o dia só estivesse começando nesse momento. Cumprimentou o porteiro da garagem e seguiu viagem até a escola da filha. De lá rumou para a empresa. Deixou o carro no estacionamento, caminhou um pouco, conversou rapidamente com o pessoal que estava fumando no hall do prédio, deu um “olá” para a recepcionista e outro para a faxineira que estava ali perto, dirigiu-se à sua mesa e desejou um bom dia aos colegas.

Apesar do sol escaldante que estava lá fora, ao chegar e ligar seu computador vestiu rapidamente sua blusa. Desde que mudara de mesa estava um tanto adoecido e sentia uma espécie de dor ao engolir qualquer coisa, mesmo um gole d’água. Era o ar-condicionado que agora apontava em sua direção. Mas não adiantava tentar protestar: era novato e considerava que não valia a pena comprar uma briga, até porque já havia sido noticiado sobre a épica disputa entre todos que ficam posicionados naquela região contra o restante da sala, que fica abafada demais com o aparelho desligado.


Colocou sua senha e usuário. Enquanto aguardava o Windows carregar, desorganizou alguns papéis sobre a mesa. Sua lista de tarefas parece só ter aumentado de um dia para o outro. Mesmo assim, começou a rotina matinal com o mesmo ritual: leu os e-mails – pelo menos aqueles que parecerem ser mais importantes ou interessantes – e respondeu a alguns deles; em seguida, seguiu navegação por uma rota conhecida, sem muitas aventuras: portal de notícias, site de relacionamento pessoal e, por fim, acessou o RSSreader. Já estava pronto para começar a trabalhar, decidiu verificar os e-mails uma última vez e eis que recebeu uma nova mensagem.
O título era “Danou-se!” e havia sido enviada pelo seu estagiário, que havia ficado encarregado de fazer uma pesquisa para um projeto. Clicou para abrir a mensagem, que seguia:

“Danou-se! Estamos perdidos! Toda a base de conectividade do projeto está perdida! Estava pesquisando sobre aquilo lá dos seis graus de separação e encontrei em um blog da marketeiros da pesada um post sobre uma mulher que acaba com a teoria... Olha só, separei uns trechos pra você ler:

(...) A revista Discover (...) tem uma matéria que põe por terra a badalada teoria “small world” de Stanley Milgram sobre os tais “seis graus de separação”. (...) Mas infelizmente, como comprovou Judith Kleinfeld, uma professora de psicologia da Universidade do Alaska (também, né…no Alaska!), a teoria não se sustenta. (...) Após estudar a fundo o trabalho, descobriu que muitos dos resultados que Milgram reportou, simplesmente não eram verdadeiros. Por exemplo, do estudo original, apenas 3, dos 60 envelopes, chegaram ao destinatário. (...) Alega ainda que a distribuição dos envelopes não era randômica e utilizava indivíduos de classes privilegiadas, que possuem, ao menos teoricamente, networks de relacionamento mais amplas. A matéria conclui com duas questões divertidas:Se realmente estivéssemos a apenas seis graus de separação, porque Bin Laden é tão difícil de encontrar? E por que é tão sedutora a idéia de que estamos todos conectados?”

Após ler tal notícia, um pouco consternado, imbricou os dedos entre os cabelos. Havia baseado todo um projeto sobre a teoria e agora teria que pensá-lo novamente. Mas decidiu não pensar nisso ainda e tratou de resolver outros afazeres. Pensou em cancelar o almoço com o pessoal da agência, mas acabou achando que um pouco de pensamento jovem poderia ajudar a refrescar as idéias. Entre uma garfada e outra, explicou seu dilema. O redator, pouco impressionado pela tal pesquisa, contou um pouco sobre a mecânica da série Lost, em que o autor trabalha com a teoria dos 6 graus. Ainda não convencido, passou boa parte da tarde cogitando novas possibilidades de abordagem para o projeto, quando o presidente da empresa o chamou para sua sala. Dizia ele que tinha um evento importante à noite e queria sua companhia para buscar oportunidades de marketing – apesar de que ele sabia que era uma espécie de agrado pela sua ótima performance nos últimos meses. Durante o evento, reparou que os figurões todos se conheciam e estavam sempre em contato. Teve um insight! Ao chegar em casa, foi direto para o computador redigir o e-mail de resposta para o estagiário:

“Talvez os dados da pesquisa tenham sido errôneos, talvez a metodologia seja cientificamente questionável, mas o fato é que a teoria é sedutora simplesmente porque é da nossa natureza humana conectar... Conectamos fatos, idéias e pessoas e depois a gente ainda vai lá e cria uma história sobre isso. Mas por mais subconsciente que seja, sentimos essas conexões cada vez que encontramos um conhecido num local estranho e comentamos “que mundo pequeno”. E isso que estamos falando de conhecidos diretos... E os conhecidos dos conhecidos que não conhecemos?

A gente bem sabe que é fácil encomendar uma pesquisa ou um estudo pra comprovar ou embasar praticamente qualquer coisa. Assim como a gente sabe que o excesso de informações faz com as pessoas absorvam e repassem muitas coisas sem questionar ou refletir. Mas o fato é que a teoria dos 6 graus existe e as pessoas sentem isso, elas sabem que vivemos em uma grande e entrelaçada rede de conexões.

Um exemplo bobo e nada científico: Lost (você já viu até a terceira temporada pelo menos, né? Se não, desencana e vai direto pra conclusão). Imaginemos hipoteticamente que o Jack - antes de acusar o pai de bêbado - tivesse que entregar um desses “envelopes" para Claire (uma australiana do outro lado do mundo)... E aí, com quantas pessoas ele teria que falar? Mas o fato é que ele jamais saberia que bastaria 1 contato.

Os 6 graus consideram uma engenharia reversa e uma onisciência de conexões. Por isso que o JJ Abrams usa isso muito bem sempre: ele sabe que as pessoas jamais poderiam "usar" os 6 graus em benefício próprio... Mas que o autor de uma história pode.”

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